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Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








segunda-feira, 14 de julho de 2014

Parábola Óptica
teorias portáteis sobre fotografia





Pascal Anders ou Da Ocupação dos Lugares


Pascal Anders 
New York City, 2010
Alphabet City, 2011
Paris Est Tout Petit., 2011
Lothringen, 2013


São quatro dos livros do fotógrafo (ver aqui). Edições de autor, chegam-nos pelo correio, em envelopes sóbrios mas personalizados, tamanho de bolso. O grafismo é depurado e de discreto efeito, e podemos encontrar elementos adicionais: provas numeradas, a reprodução de um postal ilustrado. Estes ensaios fotográficos perseguem a comunicação, buscam novos leitores e olhares, há neles um efeito claro de imersão no mundo, mas sem comprometer a busca e o rigor estéticos. São convites a aproximarmo-nos dos lugares e a conhecê-los- contudo, estamos nos antípodas do guia turístico ou de qualquer amena deambulação.
Impõe-se uma distinta personalidade fotográfica nestes livros que reinventam a estética da “street photography” (particularmente os ensaios dedicados a Nova Iorque e a Paris) ou o inquérito de matriz sociológica, em que uma aparente neutralidade do olhar procura revelações e intensidades (em Alphabet City e, de forma mais evidente, em Lothringen).
Percorridos em conjunto, explicam-nos e exemplificam diferentes estratégias dessa arte maior da fotografia que é a da ocupação dos lugares, e que se iniciou quando Louis Daguerre, num dia de 1839, experimentando uma nova tecnologia, decide dirigir a sua atenção para o Boulevard du Temple, em Paris. E lá estavam uma paisagem urbana, pelo menos dois figurantes humanos, uma ordem social, a vida que já corria.

Em New York City (2010), depois da plácida panorâmica inicial, transposto o rio, vamos penetrar na silhueta negra da cidade. As fotografias ocupam todo o espaço das páginas duplas e não vão permitir que o olhar serene. O contraste é muito forte, temos algumas chapas de luz e o gelo das sombras. Estabelece-se uma atmosfera que apetece chamar de bárbara beleza, um tanto subsidiária da estética cinematográfica de uma câmara de mão.


Estamos sempre demasiado próximos, como se nos fosse retirada a hipótese de um tempo de reacção e nos surpreendesse a vertigem de um lugar. O fotógrafo expulsa-nos de todo o espaço de conforto e a composição das imagens privilegiará os planos inclinados, as perspectivas instáveis.
Estas fotografias colocam-nos a questão de gerir o caos, de compreendê-lo ou sobreviver-lhe, envolvidos que estamos por uma multiplicidade de índices sociais e até raciais. Há em tudo uma pulsação simultaneamente pública e íntima e o mapa da cidade parece fazer-se de uma espécie de densa esgrima de olhares. Os “graffiti” surgem como se fossem verdades instantâneas e precárias, surpreendendo o espectador em busca de uma sintaxe e de um sentido para os elementos aleatórios da cidade. É uma estética que se faz de vedações, gradeamentos, linhas divisórias, perímetros de segurança, e em que circulam figuras que nos aparecem frequentemente a três quartos, no celebrado e dinâmico “plano americano”.
O livro sugere-nos um devaneio final: a noite cai, envolve o Chrysler Building; a banda sonora será de um jazz trepidante, com um solo áspero e lírico; e, se na última imagem lemos (enfim) “peace”, é apenas uma palavra de difícil e ilusória interpretação.








Em Paris Est Tout Petit. (2011) encontramos grandes afinidades com o livro dedicado a Nova Iorque, mas o efeito global é substancialmente diferente. De alguma forma, passamos de um ponto de vista exterior para a tentativa de sugerir a instalação num lugar íntimo ou natal. É como se captássemos em duas grandes metrópoles o seu timbre distintivo, um personalizado mas indefinível modo de existir e de se manifestar. (Novo delírio: ouvimos agora “Gymnopédies” de Eric Satie,  uma banda sonora para caminhar com serenidade, languidez e algum sobressalto.) 




A imersão na cidade torna-se ondulatória: ascendemos das profundezas à superfície e ao espaço aéreo; há algo de movimento solto, de “vol d’oiseau” e de abrangência afectiva do lugar, que está, aliás, sugerida no próprio título do livro. Apesar de não se obliterarem contrastes de vida e marcas de miséria social, o jogo de luz e sombra constrói, no percurso por ruas e jardins, uma atmosfera feérica e mágica. Paris surge-nos como uma espécie de brinquedo, às vezes inocente, às vezes perigoso, em cuja cenografia são desta vez incluídos crianças, estátuas, manequins e vagabundos.



 

Com Alphabet City (2011) regressa Nova Iorque, ensaiando-se uma nova grelha interpretativa da cidade, a partir de um bairro singular. Significativamente, é um bairro que não está sujeito, como o resto da metrópole, a um potencialmente infinito registo numérico, mas ao princípio de ordenação e significação que o alfabeto introduz. Há aqui uma difícil procura de nitidez, que a capa do livro, eminentemente gráfica, pode também suscitar, na medida em que lembra uma lâmina de teste de visão. 




No entanto, a escrita de um lugar como este não é simples nem linear. A cidade aparece-nos como sobreposição de tempos, intenções e mensagens (utilitárias, comerciais, institucionais, políticas, religiosas, utópicas), numa espécie de desdobrado palimpsesto.  De página para página, participamos na demanda de uma cifra gráfica ancestral, um princípio de compreensão que a rede alfabética do lugar pudesse inscrever. Ainda no registo do preto e branco, trata-se agora de uma fotografia de tipo arquitectónico, com vistas frontais de acentuado efeito gráfico, tendencialmente anulando a profundidade e reconduzindo as diferenças para o plano. Equipamentos urbanos, automóveis, pessoas (agora num estrito papel de figurantes) integram-se no efeito pictórico dominante.
Não obstante, se a cidade como que repousa nestas fotografias, o movimento regressa na intensidade das mensagens escritas ou desenhadas nas paredes, criando, num improvável concerto de vozes, uma espécie de enorme cacofonia. Tanto mais que se impõe ainda um efeito de “mise en abyme”, que resulta da sistemática utilização de imagens dentro de imagens: puro ilusionismo, falsas janelas, reproduções sucessivas da cidade dentro da cidade, suspendendo o espectador em efeitos de “trompe l’oeil”.




Com Lothringen (2013) surge a cor pela primeira vez nestes quatro livros- a cor que caracteriza os postais ilustrados como aquele que aparece, ironicamente, anexo ao livro. Mas trata-se de vistas para a decadência e para a solidão. Se há algo de um nostálgico álbum fotográfico em tons pastel, com imagens de página única devidamente enquadradas, o acontecimento “celebrado” é aqui o da desagregação de um lugar que foi politicamente apontado e explorado como uma utopia capitalista do trabalho e da prosperidade, no âmbito da indústria siderúrgica. O seu reverso é o abandono e o desemprego que a câmara fotográfica percorre, numa rigorosa topografia da desolação. A geometria das imagens e o seu perfeito equilíbrio, a aparente neutralidade da composição, suscitam e tornam flagrante, por contraste, uma dupla inscrição do ideológico, através sobretudo da valorização dos “graffiti” e das mensagens escritas, a que a fotografia de Pascal Anders é sempre sensível.




Por um lado, a ideologia irrompe pela proliferação de ícones “kitsch” que remetem para frívolas e precárias mitologias do espectáculo e do lazer, em inscrições como “Discothèque Jet 7”, “Salon Carmen” ou “Cinéma Le Palace”; por outro, nas mensagens politizadas que rasgam as paredes e pretendem reagir contra o estado das coisas.
Neste inventário da atonia (o contrário do simbolismo vital que a ideia de siderurgia convoca), as ruas estão desertas e, no pormenor de tudo, como que se procura o indício de um crime. Não podemos deixar de evocar um Atget do século XXI, com idêntica sensibilidade social e um cepticismo metódico relativamente às utopias do progresso. As pessoas, alguma felicidade (até no trabalho) surgem apenas em fictícias imagens desenhadas nas paredes: a roda dentada exibe já os extensos trabalhos da ferrugem.
A mensagem global deste ensaio fotográfico está estrategicamente assinalada: nas palavras de ordem da capa e da contracapa, na imagem que abre o livro, nas páginas centrais, na derradeira. Aqui se diz “L’emploi au coeur”- mas a pulsação é a da fotografia, capaz de pressentir o esmagado coração que aqui bateu e agora se revolta como pode.



 
Trata-se de um impulso vital, sociologica e psicologicamente determinado, que a fotografia de Pascal Anders de forma tão impressiva nos consegue comunicar, seja em Nova Iorque, Paris ou Lothringen.





J.M.T.S. 
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