poesia . fotografia . & etc.


Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

as súbitas permanências



PRECIPITAÇÃO, CÁLCULOS
lendo Carlos de Oliveira

No apuro de tantas luzes
os cálculos iridescentes
riscos frios no astro petrificado
da mão, lavas, breves águas
batem intensamente os olhos fixos
medindo concentrados
sobre o lado esquerdo
o clarão, o ar precipitado
a bátega súbita do real


J.M.T.S. in As Súbitas Permanências, Quasi Edições, 2001 (aqui)







Star Diary II . Paula Catão
filme de Pedro Teixeira






quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

das paisagens interiores



direi melhor: um lugar tem de se tornar uma paisagem interior,
para que a imaginação co
mece a habitar esse lugar,
a fazer dele o seu teatro
Italo C
alvino











JMTS . alentejo








terça-feira, 24 de janeiro de 2012





Súbito
ressuscita ao terceiro dia

Tenho de o confessar. Passei muito mal nestes dias em que não tive um súbito horizonte. Como se a minha sombra se tivesse habituado, sem o saber, a vibrações do mundo que já eram minhas. Há coisas cuja importância só se entende quando deixam de estar connosco- sim, esse lugar demasiado comum (a saúde, a felicidade, bla, bla, bla, mas é verdade...). Percebi que o meu cansaço era maior sem o cansaço que já sentia relativamente ao blogue. E cada ideia nova vinha parar, instintivamente, a este espaço extinto.

Desculpem se os desaponto com a minha indecisão e agora com esta insistência. Mas não vi razões fortes para que súbito, apesar das fragilidades que se desejam muito terrenas, não pudesse ressuscitar ao terceiro dia.

Amanhã publico aqui alguma coisa, não sei bem o quê, mas esta dúvida (aprendi-o à minha própria custa) ainda é capaz de me preencher.







sábado, 21 de janeiro de 2012




Súbito
vai parar, pelo menos por uns tempos.
Pode ser que regresse um dia destes, subitamente.
Estou muito grato a todos os que por aqui passaram e aqui viveram um pouco da sua vida.

escrita para sempre, a palavra súbito

J.M.T.S.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

GEOgrafias 
lugares & viagens & livros


PORTO / Agustina Bessa-Luís
/ António Cruz




Q
uem desce de Gaia,
com os olhos ainda presos à bonomia sólida e às vezes idílica dos subúrbios, ao seu mau-gosto urbano e à sua vida comercial em que se nota uma familiaridade de província com o seu sabor de horta com glicínias e água do poço, quem traz ainda consigo essa indiferença que as coisas felizes nos provocam, suspende-se de repente ao encontrar a face da cidade. Está ela como que inclinada numa cordilheira, com o ar cativo, as faixas das ruas parecendo pendentes do casario desigual. A luz é doce sobre os telhados dum vermelho estagnado; paredes de folha ferrugenta, cores de cimentos sujos e os verdes húmidos dos socalcos onde outrora se talhavam talvez as vinhas, compõem uma expressão de profunda simpatia moral. Há naquela velhice de bairros cruzados e lôbregos, naqueles edifícios presidiais, uma paixão e um selo de resistência. Os casaréus ribeirinhos cobrem-se de trapos que flutuam, há sobre a margem grandes lonas de cargueiros estendidas a secar; uma canhoeira prateada está ancorada como que à sombra das árvores da marginal, um grande casco dum escarlate denegrido move-se lentamente nas águas trémulas. E logo a partir do rio sobem as congostas, os caminhos altos e rebeldes, as avenidas com as imobilíssimas tílias, os calços e tapumes, túneis sobre uma terrosa ladeira, um trecho de linha onde corre, expelindo fumaças contínuas, um comboio de tejadilho arcaico e que se adianta como um cão que farejasse o terreno. Restos da muralha fernandina encravam-se ainda no próprio rosto da cidade; ela aparece com o seu perfil negro, insignificante quase entre cartazes de propaganda, diante do trânsito da ponte que, visto do alto, parece levezinho e cauteloso. Esses muros denteados, paliçada de pedra curvando-se sobre a escarpa, não têm hoje qualquer imponência; a sugestão de ruína que sempre nos adormece na exploração do passado, reduz-se muito naquele incaracterístico crescer de casas, com as pracetas de estacionamento onde as grandes carroçarias são como desperdícios e o branco parquezinho do marmorista reflecte uma civilização imolada.
Toda a cidade, com as agulhas dos templos, as torres cinzentas, os pátios e os muros em que se cavam escadas, varandas com os seus restos de tapetes de quarto pendurados e o estripado dos seus interiores ao sol fresco, tem toda ela uma forma, uma alma de muralha. Há como que seteiras, fendas, passadiços e bocais de pontes diante dos nossos olhos assestados sobre essa tremenda presença de rocha, caliça e betão armado. Uma ravina profunda marca o entalhe do rio, cujas águas verdes da primavera reflectem o crescente da sombra dos rabelos de velas enfunadas. O sol parece baixo sobre a cidade segregada da pedreira; uma transcendência de melancolia paira e comove-nos.



antónio cruz
aguarela (pormenor), 1957





Agustina Bessa-Luís, A Muralha, Guimarães Editores, 1957
António Cruz, sem título, aguarela, colecção particular, 1957